16/12/2013

Autobiografia – páginas do Diário de Bela

 «[...] o meu ser misterioso, intangível, secreto»


[1]
          «Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas, o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir – todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
          Foram-se, há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
          Nas horas que se desagregam, que desfio entre os meus dedos parados, sou a que sabe sempre que horas são, que dia é, o que faz hoje, amanhã, depois. Não sinto deslizar o tempo através de mim, sou eu que deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como compreender a amargura desta amargura? Onde paras tu, ó Imprevisto, que vestes de cor-de-rosa tantas vidas? Deus malicioso e frívolo que tão lindos mantos teces sobre os ombros das mulheres que vivem? Para mim és um fantoche, ora amável ora rabugento, de que eu conheço todos os fios, de quem eu sei de cor todas as contorções. «Attendre sans espérer» poderia ser a minha divisa, a divisa do meu tédio que ainda se dá ao prazer de fazer frases.
          Não tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas, não viso nenhum objetivo, não tenho em vista nenhum fim. Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo – uma alma – se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me

Página de abertura do Diário, datada de 11.01.1930, pp. 233-234.

 [2]
          «Viver não é parar: é continuamente renascer. As cinzas não aquecem; as águas estagnadas cheiram mal. Bela! Bela! não vale recordar o passado! O que tu foste, só tu o sabes: uma corajosa rapariga, sempre sincera para consigo mesma.
          E consola-te, que esse pouco já é alguma coisa. Lembra-te que detestas os truques e os prestidigitadores. Não há na tua vida um só ato covarde, pois não? Então que mais queres, num mundo em que toda a gente o é... mais ou menos? Honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, reta sem princípios e sempre viva, exaltantemente viva, miraculosamente viva, a palpitar de seiva quente como as flores selvagens da tua bárbara charneca!»
Página do Diário, datada de 12.01.1930, p. 234.

 [3]
          «Ponho-me, às vezes, a olhar para o espelho e a examinar-me, feição por feição: os olhos, a boca, o modelado da fronte, a curva das pálpebras, a linha da face… E esta amálgama grosseira e feia, grotesca e miserável, saberia fazer versos? Ah, não! Existe outra coisa... mas o quê? Afinal, para que pensar? Viver é não saber que se vive. Procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurasténicos. Só uma visão de conjunto pode aproximar-se da verdade. Examinar em detalhe é criar novos detalhes. Por debaixo da cor está o desenho firme, e só se encontra o que se não procura. Porque me não esqueço eu de viver… para viver?» – Diário do último ano, p. 241

Página do Diário, datada de 20.04.1930, p. 241.



_____ Referência: _____
Cartas e diário /Florbela Espanca, org., introd. e notas de Rui Guedes, Venda Nova, Bertrand, 1995 – Col. “Autores de língua portuguesa”, pp. 233, 234, 241.